A mãe e o espelho de vidro fosco

mãe

Ninguém ousava contrariar Dona Helena. A mãe perfeita. A vizinha simpática. A anfitriã que comprava pessoas usando a máscara da generosidade. A mulher que saía com o marido da amiga e obrigava a filha a compactuar. Aquela que simulava simpatia enquanto disfarçava o ódio nos olhos. Ela era o retrato moldado de uma mulher exemplar — se o retrato fosse pintado com veneno.

Maria cresceu sob o teto dessa mulher, em uma casa onde os espelhos não serviam para refletir, mas para deformar.

Aos olhos dos outros, Maria tinha sorte. Roupas limpas, festas de aniversário com mesas fartas, um quarto organizado com prateleiras cheias de livros — mas nenhum espaço para si mesma. Sua mãe sorria diante das visitas, elogiava a filha com frases frias como metal: “Ela até que é esperta”, “Não é bonita, mas tem um rosto simpático”. Depois, quando os convidados iam embora, o silêncio tomava conta. Um silêncio que cortava.

Uma mãe que lia seu diário, que não permitia que fechasse a porta do quarto. A mãe que ouvia suas conversas ao telefone. Sem privacidade.
A mãe que mandou cortar seu cabelo bem curto quando Maria foi mal na feira de ciências. Que fazia questão de pedir de volta os presentes que dava a ela em público.

Desde pequena, Maria aprendeu a calar suas emoções. Chorar era um sinal de fraqueza, e fraqueza era uma vergonha que sua mãe não tolerava. “Você vai sair assim?”, “Vai comer mais?”, “Claro que tirou nota boa, a prova era fácil”, “Esse seu desenho está torto,, que letra feia!”. Cada frase era um prego fixando a insegurança em sua pele.

Ela tentava compensar. Esforçava-se ao extremo. A primeira faculdade foi letras. Desistiu após o primeiro semestre. Um professor elogiou um texto e, ao mostrar à mãe, ouviu: “Foi sorte. Não se iluda.” O segundo curso foi psicologia, abandonado quando tirou um 7 em uma prova. “Com esse resultado, você vai cuidar de quem?”.

A terceira tentativa nem chegou ao fim. “Você começa tudo e não termina nada”, a mãe disse, como se o eco da própria voz se confirmasse no fracasso da filha.

Atrás da porta, Maria podia ouvir sua mãe inventando histórias horríveis sobre ela. “Como pode uma filha fazer isso com a mãe?”.

O terror não morava em gritos ou agressões físicas. Era mais sutil. Era o olhar de desdém, o levantar de sobrancelhas, a ausência nos momentos em que Maria desabava — e a presença sufocante quando ela tentava sorrir. Dona Helena estava sempre lá, como uma sombra que se recusava a desaparecer. E quando Maria ousava confrontá-la, ouvia: “Você é muito sensível. Tudo isso é da sua cabeça”.

Era. Era tudo da cabeça dela. Os sonhos destruídos. A voz trêmula. A sensação constante de que ocupava um espaço que não merecia. Os segredos que era obrigada a manter. Uma mãe que nunca comemorava suas vitórias e sabotava suas tentativas.

Até que, certa noite, Maria teve um sonho. Estava em um quarto escuro, diante de um espelho. Mas o espelho não refletia sua imagem. Só mostrava a silhueta da mãe, sorrindo. E atrás dela, Maria, desfocada, apagada. Tentou gritar, mas nenhuma voz saiu. Acordou em lágrimas.

Na terapia, aprendeu a dar nomes às dores. Narcisismo. Gaslighting. Controle emocional. Tudo que parecia abstrato passou a ter forma. Não era loucura. Era abuso.

Começou então um processo doloroso: reconquistar a própria voz. O primeiro passo foi afastar-se. Deixar de tentar agradar. Começou pequeno, recusando um convite. Depois, dizendo “não” sem justificativas. Foi como aprender a andar com as próprias pernas após anos de rastejar. Difícil. Dolorido. Libertador.

Dona Helena, claro, reagiu. Chorou. Fez escândalo. Disse que a filha era ingrata. Que estava sendo manipulada. Que ela — veja só — sempre fizera tudo por amor.

Mas já era tarde. Maria, finalmente, começava a se ver no espelho. Ainda embaçada, ainda com medo. Mas era ela ali. Inteira.

E pela primeira vez, quando sua mãe tentou tomar o centro do palco, Maria não se retirou. Permaneceu de pé. Silenciosa. Firme. Desempenhou seu papel. E o terror, agora, era da mãe. Porque perder o controle… era o único medo que ela jamais aprendera a esconder.

Mesmo após tantos invernos em sua alma, a primavera começava, enfim, a florescer. Ela carregava cicatrizes profundas — marcas silenciosas de dores que ninguém testemunhara —, mas também levava consigo a coragem de quem sobreviveu ao tipo de amor que machuca.

Já não era mais a menina que implorava por migalhas de afeto. Agora, era a mulher que aprendera a se nutrir da própria luz. Deixava para trás os espelhos quebrados nos quais fora forçada a se enxergar, e seguia em frente — trêmula, sim, mas decidida —, rumo à sua própria essência.

Porque há vida depois da dor. E Maria escolhia vivê-la por completo: sem correntes, sem máscaras, sem medo — e, sobretudo, sem a mãe.

 

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